Eu, vítima
- Lulie Rosa
- 21 de fev. de 2017
- 3 min de leitura

O lugar de vítima é um dos mais ambíguos em que já estive, me sentir vítima de uma situação, de alguém, da vida, do sistema ou de mim mesma, me faz experimentar sentimentos tão controversos que ainda mal consigo organizá-los em mim. Ao mesmo tempo que me sinto impotente e injustiçada, dolorida ou humilhada também experimento um sentimento de conforto e até uma leve satisfação. Me sentir vítima me permite estar num lugar de impotência, que é limitante e castrante, mas também me acalma, me acomoda, e principalmente autêntica minha incapacidade, seja ela qual for.
Me sinto mal por me sentir limitada, mas me conforta saber que tenho justificativas suficientes e convincentes para me sentir assim. Me incomoda sentir que o que vivo não é justo comigo, ou que eu gostaria que fosse de outro jeito, mas não é, pois afinal, o que é justiça?
Dói o estômago pensar no quanto as coisas estão "erradas", dói na alma saber que ainda há muito o que ser feito, especialmente quando as premissas vem de outros tempos, de uma cultura que há milênios se mantém, dói e me causa enjôo assumir que se está no passado, o fato em si, não é possível mudar. Dói tudo. Especialmente as costas, os ombros que é onde carrego em silêncio o peso de tudo o que me vitimiza. E o que me faz sentir assim? Tudo o que sinto que não fui eu quem escolhi. Tola eu, que muitas vezes não percebo que até mesmo não escolher é uma escolha. "Mas me deixa" é tão mais fácil transferir, justificar, culpar, anestesiar, abstrair... "Quem foi que me colocou aqui?" Dói não me responsabilizar pelo que vivo, pelo que sinto, por onde estou, mas muitas vezes ainda prefiro culpar meus pais, alguém que não me amou, "meu" corpo, minha condição social, minha pobre infância, a escassez material... Dói, mas prefiro a culpa que me afunda cada vez mais na dor que vem de fora. Dói me olhar e perceber que me responsabilizo facilmente pela (in)satisfação alheia, mas tamanha a dificuldade em me responsabilizar por minha própria realidade. Dói sentir que poderia ir além, mas não consigo. Dói admitir meus medos, minha preguiça, minha angústia que me paralisa, minha insensibilidade. Dói ser humilde, e me fazer pequena diante da vida que acontece, muda, se transforma, constantemente. Dói sonhar grande e me ver apenas mais uma em meio a multidão. Dói as dores do mundo que grita, que não para, que me mostra o tempo todo que ainda há muito o que aprender. Dói os conceitos e crenças de certo e errado que não sei como, e se quero, aplicar... E essa dor nunca cessa?
Apenas quando acolho minha própria imensidão. Quando me ouço e aceito o que realmente sinto. Quando me perdôo e me permito chorar, esvaziar, ser honesta com minha própria e humana limitação. A dor passa quando consigo dar o primeiro próximo passo, o único possível agora. A tranquilidade vem quando acaricio, mas liberto o tempo que continua a passar, e então vivo, momento a momento. Acalma o coração não ter que acusar, aprender a libertar a culpa que não precisa ser de ninguém. Se aconteceu assim veio à ensinar, se passou me permite olhar de onde estou.
Engrandece minha alma perceber a magia da vida perfeita o tempo todo, mesmo na dor que também trouxe sua sabedoria e necessidade de ser, uma vez que meu ser não estava pronto para aprender puramente no amor. Desejo eu, amar mais. Pra não me fazer mais vítima, pra não vitimizar nem alimentar vitimismo de ninguém. Não é possível nem preciso viver a dor do outro, reforçar/autenticar qualquer injustiça, qualquer limitação. Se posso olhar o outro em sua dignidade, me assumo digna também. Mudar o que já foi não podemos, mas no agora, escolhemos como continuar: separando, reduzindo, segregando, brigando, sofrendo pelo que foi/pelo que falta, ou unindo e seguindo valorizando o que se tem?
Me satisfaz ser criativa, encontrar novas possibilidades para questões antigas, ver outros ângulos da mesma (in)verdade, compreender a realidade da escolha, que não está no desejo, mas sim no sentir, e principalmente na ação. E se é a não escolha que me vitimiza, deixo de me sentir vítima se reconheço que vivo exatamente o que vibro, e que me moldo ao meu sentir. Se quero uma vida diferente cabe a mim então escolher conscientemente com o que me identificar, que sentimentos nutrir, que atitudes tomar. E no lugar de quem escolhe posso fazer diferente ou manter tudo exatamente como está. O primeiro passo é me conscientizar, novas possibilidades vem com o tempo, por hora me satisfaço em me (auto)responsabilizar.
Lulie Rosa, Fevereiro de 2017, Florianópolis-SC
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